Passo a passo



Retiro em Auschwitz-Birkenau 
Por muitos anos, aspirei participar de um Retiro dos Zen Peacemakers em Auschwitz-Birkenau. Há pouco tempo, esse sonho tornou-se realidade, com o apoio de vários amigos. Reunidas as causas e condições necessárias, dediquei-me a fazer minha parte, entregando-me por cinco dias a essa jornada voluntária naqueles locais tão dolorosamente significativos para a história humana.
Nossa experiência começou em Krakow, na Polônia, onde os participantes reuniram-se na tarde do domingo, dia 31 de outubro de 2010. Na manhã da segunda-feira, 1° de novembro, fomos de ônibus para Oswiecim (Auschwitz, em alemão), cidade próxima aos antigos e dolorosamente famosos campos de concentração. Éramos 84 participantes (68 adultos e 16 jovens), de várias nacionalidades, a caminho de algo que, por mais que nos preparássemos, sentíamos que iria nos surpreender, de algum modo. E assim foi também comigo... Após sairmos de Krakow, no trajeto de quase uma hora, a solicitação era de que mantivéssemos o nobre silêncio após 15 minutos da partida. Isso aconteceu de forma espontânea, à medida que a viagem progredia, pois o ambiente no ônibus transformou-se, e, das naturais interações de um grupo que há pouco se reunia, fomos nos recolhendo cada um em seu espaço pessoal, e ao silêncio coletivo. As circunstâncias ajudavam, pois a estrada passava por cemitérios cobertos de flores, algo tradicional na Polônia na data de 1° de novembro, quando se comemora o “Dia de Todos os Santos”...
A rotina do Retiro era algo diferente da que estou habituado em um Sesshin (Retiro de prática intensiva) tradicional do Zen. As atividades começavam às 6 da manhã, para os que queriam praticar Yoga. Depois, às 7 horas, o primeiro encontro de todos os participantes, mas em pequenos grupos, na metodologia de Council, onde todos têm oportunidade de falar do seu sentir, a partir de um referencial de autenticidade, respeito e conexão com a experiência do momento. Às 8:30H, desjejum, em silêncio. A partir das 9:30H, nos deslocávamos até o local do campo de concentração. O primeiro grupo, caminhando; o segundo grupo, de ônibus.
No primeiro dia, visitamos o campo de Auschwitz I, com seu tragicamente célebre portão de entrada, por conter a inscrição “Arbeit macht frei“ (algo como: “O trabalho liberta.”) Conhecemos vários dos prédios - com suas dolorosas lembranças -, que atualmente constituem um Museu, e ao final dessa visita, realizou-se uma cerimônia inter-religiosa junto ao Muro das Execuções. Nessa ocasião, representantes do Budismo, Judaísmo e Islamismo oficiaram em memória das pessoas que foram ali mortas a tiros. Opcionalmente, ainda pudemos visitar a Câmara de Gás e Crematório de Auschwitz I, que foram utilizadas em caráter provisório, até a construção de Auschwitz II (Birkenau).
A partir do segundo dia, nossa rotina mudou um pouco, e foi repetida até o final do Retiro: iniciávamos o dia da mesma forma, mas nos deslocávamos agora para Auschwitz-Birkenau, também em dois grupos. Caminhando, eram 40 minutos. Ao chegar, nos reuníamos no assim denominado “Portão da Morte”, por onde outrora passavam os trens com milhares de civis, muitas dezenas em cada vagão, vindos de vários países da Europa, viajando em pé, sem água ou alimentos, em jornadas que em alguns casos duravam vários dias, sem paradas, nem mesmo para as necessidades fisiológicas...
Do portão, caminhávamos em silêncio até o antigo Barracão de Triagem, onde recebíamos colchonetes e almofadas de meditação (Zafus), e aqueles que necessitavam podiam utilizar bancos de madeira. Nosso “Zendo” era montado ao ar-livre, com qualquer clima, e ficava localizado na “Rampa”, o local onde outrora os prisioneiros desembarcavam dos vagões de transporte e passavam por uma triagem, sendo os considerados aptos para o trabalho forçado encaminhados aos barracões-alojamento, e os demais, julgados inaptos, dirigiam-se para o “Setor de Desinfecção”, o que significava a sumária execução da sentença de morte. Antes, porém, todos eram confiscados de quaisquer pertences, tinham o cabelo raspado, e os que não eram executados de imediato recebiam a tatuagem de um número, que substituía seus nomes a partir de então.
No centro de nosso local de Prática, algumas velas e uma caixa de madeira que iria conter as folhas com nomes de pessoas que morreram nos Campos de Concentração. Nós, sentados em um grande círculo, pela manhã fazíamos dois períodos de 30 minutos de Zazen. No primeiro, apenas sentar. No segundo Zazen, enquanto a maioria dos participantes permanecia em silêncio, os integrantes de um dos pequenos grupos de Council fazia a leitura de algumas dezenas de nomes de vítimas do Holocausto. Depois do zazen, participávamos de uma cerimônia em alguma das instalações originais do Campo; nos barracões ainda remanescentes do setor das mulheres e das crianças, nos prédios da “desinfecção” (onde os prisioneiros eram submetidos a um processo de desidentificação, ou poderíamos chamar também de desumanização), nas ruínas das enormes Câmaras de Gás e Crematórios – dinamitados um pouco antes da chegada das tropas Aliadas, e no monumento internacional que honra a memória das vítimas. Nessas cerimônias, ao final sempre recitava-se o Kadish (oração judaica), em vários idiomas.
Após essa última atividade da manhã, tínhamos o intervalo de almoço, quando recebíamos em nossa tigela a sopa do dia, e pão. Nossa refeição ocorria fora dos limites do Campo, pois, por respeito às vítimas, nunca devíamos levar água ou alimentos para dentro das cercas. Desnecessário dizer que aquele alimento simples, que talvez em outro local e ocasião seria considerado pobre ou insuficiente, ali, naquele local de tantas memórias de sofrimentos e privações, tornava-se um banquete digno da profunda gratidão de todos.
Na parte da tarde, fazíamos outro período de Zazen acompanhado da leitura de mais nomes, e finalizávamos as práticas dentro das instalações do Campo com uma cerimônia memorial inter-religiosa. Nessa, cada tradição – budista, judaica, islâmica e católica – oficiava ao mesmo tempo em um diferente local significativo. Cada participante podia escolher em qual local e tradição desejava participar naquele dia, e esse momento era algo que me permitia confirmar que a forma apenas serve para manifestar a motivação sincera de nossos corações humanos, se assim o permitirmos. O fato é que o contato com aquelas memórias de dor e desumanidade requisitava o consolo de alguma prática, para uma resignificação que fosse além de qualquer elaboração racional que pudéssemos fazer.
No último dia, essa cerimônia inter-religiosa foi realizada de forma conjunta, com cada uma das quatro tradições realizando em sequência suas orações, em locais diferentes, numa dinâmica inspirada em uma concepção do Padre Manfred (Coordenador do Centro de Diálogo e Orações onde ficamos hospedados), que metaforiza as Estações da Paixão de Jesus. Esse foi um momento muito tocante, pois todos pudemos ouvir os líderes religiosos lembrarem da importância de olharmos para aquele passado doloroso como um alerta e uma fonte de instrução para nossos dias e para o futuro.
Todas as noites, também tínhamos alguma prática coletiva: visitamos a impressionante exposição dos desenhos de Marian Kolodziej (o prisioneiro 432, que sobreviveu a quatro anos e meio em Auschwitz, e registrou em seus trabalhos a terrível realidade daqueles dias); participamos de dois Councils de todo o grupo, um dos quais ocorreu na noite de quinta-feira, dentro de um dos barracões de prisioneiros em Birkenau, com a presença de um dos únicos sobreviventes de uma fuga do Campo. E, na última noite, houve a celebração do Shabat, com presença opcional, após o que nos foi oferecido um jantar de encerramento, e uma confraternização de todos os participantes, com a oferta dos talentos daqueles que sentiram-se inspirados a tal.
Assim foram aqueles dias, em seu aspecto visível. Porém, no que me diz respeito, o mais significativo ocorria o tempo todo no mundo silencioso dos sentires, nas manifestações de emoções ora contidas, ora transbordantes em lágrimas e isolamentos silenciosos de muitos de nós. Ainda que as condições físicas fossem muitas vezes adversas – num dia ficamos na chuva, e em pelo menos em dois dias o vento era tão forte e tão frio durante os períodos de zazen que precisamos colocar pedras dentro dos sapatos para que não fossem arrastados para longe – o frio maior, a escuridão mais assustadora estava dentro de mim. Em muitos momentos, foi impossível entender o que quer que fosse; felizmente que assim foi, penso eu, pois desse modo pude seguir com mais disciplina as orientações de Genro Sensei e Glassman Roshi, que nos indicaram que, nesse Retiro, os maiores ensinamentos seriam dados por Auschwitz.
Indizível gratidão, supremo consolo. Lá estava Buda, em sua sua persistência e generosidade na Prática; comigo estava o Darma, com sua preciosa profundidade e incompreensível sutileza; em minha determinação, fraquezas, desesperos e alegrias, também me acompanhava a Sanga, com sua harmoniosa manifestação de todas as inevitáveis diversidades.
Se tiver de resumir os sentimentos desses dias fecundos, devo falar de tristeza e esperança.
Talvez nunca em minha existência tenha contatado com tamanha tristeza, com tão profundo pesar. A dor indizível de ver o registro daqueles tantos olhares – nas fotos, nos desenhos – que já não tinham expectativa de ver qualquer outro horizonte que não fosse a morte sem qualquer compaixão ou respeito; os muitos sapatos, óculos, brinquedos, malas, cabelos, de pessoas que pereceram sem nenhum consolo de uma presença amiga; o silêncio frio daqueles barracões, onde os dias devem ter passado lenta e pesadamente para aqueles que sobreviviam para trabalhar e para desejar ao menos uma morte honrada, morte esta que tardava em vir libertá-los da dor interminável de continuarem vivos. Acima de tudo, porém, convivi e me permiti acolher a tristeza imensurável de perceber que, de fato, ainda colocamos em prática muito pouco do que podemos e devemos aprender com aquelas páginas vergonhosas de nossa história comum. Para além dos papéis das vítimas ou perpetradores daquele horror, persiste nossa experiência de seres humanos que, em muitas ou no mais das vezes, continuam insensíveis às necessidades alheias. E, principalmente, continuamos a temer a diversidade, a culpabilizar o que não aceitamos, a punir o que escapa ao nosso entendimento ou interfere em nossos interesses limitados, egoístas. Persistimos em nos considerar de algum modo melhores ou especiais, e desse modo preparamos o terreno para o preconceito, esse brutal e cruel obstáculo à manifestação de uma cultura de paz. Assim, seguimos a conviver em uma cultura muito pobre em termos da realização autêntica de nossos sonhos existenciais mais profundos.
Pois bem; se tamanha tristeza me fez companhia naqueles imensos espaços gélidos, assim também andei por lá de mãos dadas com uma luminosa esperança. Aprendi com alguns eventos da história daqueles Campos que o ser humano pode efetivamente ir além das limitações do si mesmo, e tocar os limites da compaixão. Por exemplo, lá está o relato sobre o prisioneiro 16670 – o Padre católico polonês Maximilian Kolbe – que silenciosamente submeteu-se a morrer de fome para salvar a vida de outra pessoa condenada à mesma forma de execução. Lá, no decorrer do Retiro, pude testemunhar a sincera determinação de tantos participantes que, corajosamente, mantiveram-se firmes na Prática, apesar das dores e revoltas daqueles ligados de alguma forma às vítimas, e apesar das culpas e vergonhas herdadas por aqueles ligados de algum modo aos perpetradores. Para todos, restava a consoladora possibilidade do agora, esse terreno fértil e real, que pode gestar um novo porvir. A cada depoimento, a cada manifestação honesta que alguém fazia de seus sentimentos, todos nós nos sentíamos fortalecidos para expressar cotidianamente que algo temos aprendido com a história daqueles dias de horror. Na minha experiência, algo extremamente significativo foi ver, uma vez mais, como é bonito e inspirador participar da convivência pacífica e respeitosa entre as diferentes tradições espirituais. Foi emocionante ver, ao longo dos dias e de diversas formas, a forma como interagiram, em uma motivação fraterna e sábia em suas manifestações, o Rabino Ohad, o Imam Ihab, Padre Manfred, Glassman Roshi e Genro Sensei. Algo tão simples e tão raramente colocado em prática: se todos desejamos ser felizes, como podemos aspirar a ver isso manifesto se não respeitamos e valorizamos a diversidade de tantas visões sobre como ser feliz? É necessário e urgente que nos permitamos a experiência de conviver com exemplos desse tipo de comportamento edificante.
Finalmente, se algo o Retiro em Auschwitz-Birkenau já me ensinou, foi que devo em qualquer circunstância manter firme e serena a minha Prática; devo persistir no cultivo das sementes de paz em meu coração – pois se elas não germinarem ali, certamente não florescerão ou darão seus frutos no mundo; e, para meu próprio bem e o de todos os seres, devo respeitar e valorizar os ensinamentos do Darma e os exemplos dos Professores e Professoras, seguindo com humildade os chamados que consigo captar. Naqueles dias, comprovei que, se um Sesshin em um Campo de Concentração pode parecer algo um tanto extremo e amedrontador, mais extremo e trágico é aceitar viver um dia de nossas vidas sem perceber a preciosidade nele contida, como se pudéssemos ter uma segunda chance de viver de novo esta vida.
Aspiro que possamos cultivar a sabedoria e a compaixão aqui e agora, e manifestá-las em todas as nossas relações. Que eu possa sinceramente dedicar todos os méritos de minha Prática ao benefício de todos os seres. Que todos os seres possam ser felizes, livres e pacíficos.

Jorge Koho - novembro/2010 

-Algumas fotos no álbum do Picasa
 

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Breve Relato de um Retiro de Rua

    No período de 13 a 16 de maio de 2010, participei pela primeira vez em um Retiro de Rua, em Zürich.   Nossa  prática foi orientada por Genro Grover Gauntt Sensei – dos Zen Peacemakers dos EUA –, assessorado por Jürgen  Lembke, experiente praticante suíço.

    Ainda que seja inviável relatar em detalhes a enorme riqueza de eventos que vivenciei em um tão breve período de tempo, surge forte a aspiração de partilhar ao menos um pouco, por gratidão e contentamento.
    Nosso grupo estava constituído por 09 pessoas: 07 homens e 02 mulheres. Ao longo de quatro dias e três noites, tivemos a oportunidade de partilhar um cotidiano muito singular, deliberadamente baseado na renúncia. Sem dinheiro, roupas extras, telefones, computadores, carros ou outros confortos, fomos para as ruas exercitar a entrega e a confiança. Como definiu Genro Sensei, num Retiro de Rua aceitamos nos “desconectar” das nossas rotinas e certezas, e nos despimos um pouco de tudo que nos é familiar, inclusive de nossos papéis habituais. Dessa forma, um pouco mais “nus” de tudo que temos, fomos reaprender a nos relacionar de modo mais direto com os outros seres e com a vida. Em termos práticos, abrimos mão de muitas realidades por nós mesmos construídas, que usualmente representam barreiras a um diálogo existencial verdadeiro e profundo. Para isso, nos apoiamos solidariamente de modo a deixar para trás muitos obstáculos ao viver no aqui-agora, especialmente nossas identidades mais seguras e às quais temos mais apego.
    Como guias simbólicos, tivemos o amparo dos três princípios básicos dos Zen Peacemakers: not knowing (o não-saber), bearing witness (dar testemunho, experienciar), e loving actions (ações compassivas, amorosas). De modo direto, esses princípios remetem ao Buda (a Unidade), ao Darma (a diversidade da manifestação da Verdade), e à Sanga (a Comunidade de Prática, a escola de aprendizagem da harmonia, da Unidade na Diversidade). De modo a manifestar esses conceitos no mundo, nos dedicamos a praticar em condições mais desafiadoras que as usuais, mas de forma honesta e diligente, cultivando o estado de paz natural da mente. Fazíamos meditação sentada (zazen) três vezes ao dia – nos momentos em que as circunstâncias assim o permitiam – e realizávamos a liturgia dos “Portais do Doce Néctar” pelo menos uma vez ao dia, com suas recitações que se referem a mitigar as fomes em todos os planos da existência.
    No período do Retiro, o clima colaborou: choveu na maior parte do tempo. Já estávamos na primavera da Suíça, mas ainda assim as noites foram bastante frias, especialmente no período que antecedia o amanhecer; na noite mais fria, chegamos aos 4 graus centígrados. Por isso, pudemos vivenciar condições que nutriram em cada um de nós a gratidão por tudo que temos, e uma empatia real para com aquelas pessoas que moram nas ruas, e que necessitam desenvolver a cada dia uma estratégia de manutenção de sua integridade e saúde. Em duas noites, dormimos ao ar livre, protegidos por construções para nos abrigar do frio, da chuva e de possíveis curiosos ou da polícia: numa ocasião, embaixo das escadarias de uma Escola, e em outra sob os arcos de uma ferrovia. Nessas ocasiões, para nos aquecer fazíamos uma base com papelões recolhidos durante o dia, nos mantínhamos completamente vestidos e nos cobríamos com o cobertor que haviam orientado a portar. De resto, facilmente confirmei a sentença que afirma que “a necessidade é a mãe da invenção”: desde o início, Genro Sensei nos orientou a cultivar a plena atenção, no sentido de ver os muitos tesouros que se fazem disponíveis a quem nada tem (ou, no nosso caso, quem opta por viver a experiência de ter o mínimo.) E logo começamos a achar coisas que sob outras circunstâncias pareceriam inúteis, mas que agora  transformavam-se em preciosos recursos, pela simples adição do tempero da nossa criatividade, a qual era estimulada pela chuva, pelo frio e pela carência de um teto.
    O principal apoio, entretanto, não encontramos em coisas materiais. Acolhendo a experiência e orientação dos coordenadores, buscávamos nos relacionar com as pessoas que encontrávamos a cada passo – e caminhávamos muito, o dia todo. De modo especial, recebemos indicações decisivas e ensinamentos vindos daquelas pessoas que realmente vivem em condições de grande risco social. Desabrigados, alcoólatras, drogaditos, todo tipo de desajustados sócio-emocionais, foram em várias ocasiões as fontes das respostas que nos abriram portas. Em especial, quero relatar sobre um rapaz,  a quem chamarei T., e que encontramos – ou talvez seja mais correto dizer que ele nos encontrou – em mais de um momento de busca de abrigo ou alimento. Sempre alegre e bem disposto, “T” se aproximava e começava a conversar com todos, e acabava por informar, de forma  gentil e desinteressada, as melhores possibilidades de obtenção de auxílio naquele dia e momento. Era possível ver que ele detinha um enorme conhecimento sobre as ruas e sobre as dificuldades de quem nelas vive. Com uma incrível gentileza e habilidade no trato, esse autêntico “Bodisatva dos desabrigados” aproximava-se de quem estava nas filas de atendimento, nas esquinas, e ia dando orientações e respostas aos questionamentos que, de outro modo, talvez fosse muito difícil de resolver. Gratidão ao seu coração bondoso e sua mente de acolhimento, provavelmente desenvolvidos pela compaixão surgida em meio à solidão e dureza da vida nas ruas.
    Pude constatar que, se queremos vislumbrar soluções viáveis para os sofrimentos e desafios do mundo em que vivemos, não basta conhecer seus problemas: é preciso vivenciá-los de forma direta, em profundidade. Por isso, também seguindo as orientações, já cinco dias antes do início do Retiro, deixei de cortar o cabelo, fazer a barba e lavar a cabeça. Como durante o período nas ruas tínhamos apenas uma muda de roupa e calçado, foi fácil adotar uma aparência bastante convincente de alguém que mora nas ruas. Ao par disso, também meu tipo físico é muito mais de um latino que de um europeu, e ainda não sou capaz de me comunicar bem em alemão ou suíço-alemão; isso tudo facilitou muito as coisas, ao criar mais desafios junto às pessoas a quem abordava para pedir. Não foi difícil entender na prática o conceito, que eu já conhecia racionalmente, do que é ser uma “pessoa invisível”. Pude ali ver minhas próprias atitudes refletidas naquelas pessoas que passavam ao largo sem nem mesmo responder, por eu estar com uma aparência não muito recomendável, com um aroma também algo desagradável, e uma limitada capacidade de comunicar minhas idéias. É compreensivelmente mais fácil ignorar alguém nessas condições; da mesma forma, também fica mais fácil entender a ética subjacente, encontrada entre os moradores de rua, que gera uma atitude de apoio entre os que se reconhecem irmanados pelas mesmas limitações. Naturalmente, logo surgiu em cada um de nós uma alegria profunda em cada porção de alimento que alguém nos dava, e uma alegria ainda maior ao partilhar com os que nos acompanhavam. Creio que compreendi como nunca a dedicação que fazemos ao receber o alimento, o qual chegou até nós “através do esforço de inumeráveis seres; que possamos viver nossas vidas de forma digna de merecê-lo...”
    Numa ocasião, chegamos a um local que fornece sopas ao final da tarde para pessoas carentes. Na fila, fomos informados que só restavam cinco pratos para distribuir. Sem qualquer combinação prévia, fomos um a um saindo da fila, e ao nos reencontrarmos os nove, já lá fora na calçada, todos sorríamos, totalmente alegres pelo que tivéramos a coragem de abrir mão. A fome de comida foi transmutada em  plenitude de sentido. Já sem nos causar muita surpresa, logo a seguir tínhamos a companhia de T, que nos explicou com riqueza de detalhes que, de fato, para ele também era bom abdicar da sopa naquele dia, pois precisava mesmo fazer dieta para reduzir a barriga, já que nem a natação, nem a academia de ginástica que ele frequentava estavam dando resultados...(!) Antes de nos separarmos, como de hábito ele nos indicou outro local onde, afinal, fomos acolhidos e recebemos a refeição que nos garantiu mais uma noite sem fome.
    Em outro momento, chegamos até uma Igreja – de confissão Evangélica-Reformada – que nos acolheu fraternalmente. Essa Igreja, St.Jakobs, é especial em muitos aspectos, por ser declaradamente “aberta”. Para nós, o principal diferencial era saber de antemão que lá existia a prática de meditação silenciosa, duas vezes na semana. Confirmou-se nossa boa expectativa, e nos permitiram dormir dentro do templo. Inclusive pudemos participar de um lanche comunitário, preparado por e para imigrantes asilados sem regularização formal (“sans-papier”). Em troca, nos foi requisitado que ajudássemos na limpeza e organização do local, preparando-o para o Serviço religioso da manhã seguinte. Trabalhamos sorrindo, porque o Samu foi fácil e pleno de sentido, e, como um dos nossos participantes tocava piano, ainda pudemos preparar o sono embalados por boa música e boas reflexões sobre a importância de estar-se disposto a acolher os presentes que a Vida oferece. Nessa noite, dormimos como reis e rainhas, num lugar aquecido, sem chuva, e até tivemos desjejum na manhã seguinte, a partir das maravilhosas sobras do lanche da noite anterior...
    Desejo assinalar que me causou um certo espanto a rapidez com que, no Retiro, percebi que “nós” passávamos a ser “eles”, e “eles” passavam a ser “nós”. A partir da mudança de contexto em que eu estava inserido, quase que de imediato comecei a sentir simpatia e afinidade por todos aqueles seres que usualmente procuraria evitar: “... os gatos mais pobres das ruas, os cães mais sarnentos...”  E, pelas mesmas sementes de apegos e aversões, um quê de prevenção e antipatia em relação a qualquer ser de boa aparência, limpo, confortável. Felizmente, sempre lá estava Genro Sensei, para nos lembrar que o diferencial é que tínhamos o mérito de perceber a abundância dos milagres cotidianos, e conhecer a preciosidade do Darma, com que reconectávamos a cada Zazen, a cada liturgia. Quando as ondas das emoções se aplacavam no silêncio, era fácil perceber que podemos propor uma solução para os desafios encontrados, mas isso não significa que tal seja a única, nem a melhor. A realidade do mundo é complexa, sempre, e somos parte das causas e condições que tecem a trama da vida, seus problemas e suas soluções.
    Desse modo, a cada experiência foi se fortalecendo em mim a percepção de quanto poder de auto-transformação somos dotados, já que não é possível separar a realidade em “nós e eles”. Grande contentamento: uma visão clara da não-separatividade, na prática, em carne-ossos-frio-e-sono, ali mesmo nas ruas, debaixo da chuva, há três dias sem banho e sem escovar os dentes...! Ao mudar meu olhar para as circunstâncias, elas como que se tornavam plásticas, e as mudanças se manifestavam na abundância de tempo por não haver nada a fazer, no poder de optar por não haver nada a obter.
    Assim, pelas mesmas vias, fui confirmando que impor uma solução, por melhor que ela possa me parecer, representa em certa medida uma violência para quem vivencia o problema. Neste ponto, a mim parece que ajudar, assim como ensinar, consiste mais em ouvir com plena atenção as perguntas do que em oferecer respostas. Ao longo daqueles dias, minha noção de realidade social se ampliou notavelmente; pude constatar a enorme e tocante generosidade que habita em cada ser humano, pude confirmar como podem ser simples e prosaicos os trajes que o amor compassivo usa para se manifestar. Em muitos momentos, ser digno de receber um olhar de acolhimento ou um sorriso fizeram a diferença entre existir ou ser ninguém. Embora a pressa da vida cotidiana nos faça muitas vezes esquecer, estamos a cada momento criando e recriando a realidade do mundo, com o nosso olhar, com a nossa motivação, com a nossa presença.
    Assim, na aspiração de poder partilhar a alegria de ter vivido essa experiência notável, manifesto minha incomensurável gratidão por todo apoio recebido na consecução dessa “loucura sábia”. À família, pela paciência, respeito e prática dedicada ao nosso bem-estar e integridade; aos Professores de hoje e sempre, pela generosidade dos ensinamentos e da referência viva; e aos irmãos e irmãs de retiro, pela presença honesta, corajosa e fraterna. Que qualquer mérito resultante seja revertido em benefício de todos os seres. E que possamos juntos – todos, ricos ou pobres, alegres ou tristes, com casa ou sem-teto, famintos ou saciados – seguir o Caminho de Buddha, aqui e agora, que na verdade é só e tudo que temos.


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